domingo, 25 de janeiro de 2015

O OLHAR QUE ENSINA


"Mas Carmela não tinha a ciência das outras moças italianas daqui.  Pudera, as outras saíam todo santo dia, frequentavam as oficinas de costura, as mais humildes estavam nos cortumes,   na  fiação, que acontecia?  Se acostumavam com a vida.  Não tinha homem que não lhes falasse uma graça ou no mínimo olhasse para elas daquele jeito que ensinava as coisas.  Ficavam sabendo logo de tudo e até segredavam imoralidades umas pras outras, nos olhos."


Que ciência é essa que falta a Carmela?  Que coisas são essas que os olhos dos homens ensinam? Que mágica é essa, em  que um simples olhar faz as moças saberem de tudo? E onde estavam guardados esses segredos agora trocados pelos olhos das moças?

Vamos por partes.  Pelo menos três partes. 

Num primeiro momento se supõe que, igualmente a Carmela, as outras moças também se encontrem num estado de inocência e desamparo, carentes de uma ciência que as torne aptas a lidar com a mundanidade do trabalho e das ruas. 

Depois vem o momento de aprender a ciência, de se acostumar com a vida.  E as moças não aprendem as graças que os homens falam.  Elas aprendem coisas que os homens olham. Este olhar divide as águas. Antes dele, via-se inocência.  Depois dele, o que se vê?  Vê-se olhares autônomos de moças que trocam segredos.  Segredos "ïmorais".

No terceiro momento, as moças já estão acostumadas com a vida.  Se acostumar com a vida é aprender a conviver com esse olhar e com o que ele ensina.  Mais ainda: é fazer seu esse olhar e com ele trocar "sabedorias" com outros olhos.

Perguntemos agora  como se opera a mágica que faz com que os homens ensinem coisas às moças apenas com seus olhos.  Invoquemos Mesmer se quisermos supor que algum fluido sutil transporte a sabedoria dos olhos dos homens aos olhos das moças.  Mas os iluministas já nos ensinaram que tal fluido não existe.  Nada passa de um olho para o outro além do próprio olhar.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Da mãe à mão.*

Poemapenas

Poema apenas registro
da poesia viva pelas ruas
pelas noites
pelos corpos.

Poema apenas retrato
em alma inteira
do meu corpo três-por-quatro.

Poema apenas clarão
na noite densa
turva
longa e sem mão.

Poema apenas.
Como um gato.

                                                                                              Ronaldo Monte

            O que me intriga neste poema é justamente este sem mão, pois escrevi  sem mãe, quando pela primeira vez escrevi o poema à mão. Na hora de passar a limpo, datilografar, escrevi sem mão. No primeiro livro em que o poema foi publicado, na hora da revisão, percebi que estava lá sem mão. Paciência, então. Resolvi não mais brigar com a teimosia do texto. E aí está ele, vencedor, exigindo uma mão no lugar de uma mãe.
            Há um tempo atrás, veio do divã a voz de um jovem que quer falar da mãe, mas que fala mão.  E quando lhe mostro o lapso, lembrando ao mesmo tempo do poema, a voz me diz que também troca a mãe pela mão quando escreve no computador.
            E quando uma amiga e colega, falando do Pequeno Hans, também faz a mesma troca, me convenço de que alguma coisa transita entre a mãe e a mão que deve ir além dos nossos lapsos de língua.
            Penso então na mão da mãe de Hans circulando em volta do pênis dele, circulando e ao  mesmo tempo apontando o lugar do desejo. É uma mão, uma representação parcial dessa mãe que está ali também apontando um objeto parcial do seu desejo. E agora eu me ponho no lugar de Hans nesse momento de uma certa espera desse toque, mas ao mesmo tempo o medo que esse toque se realize. Essa coisa que se chama angústia, mas que já traz, de uma certa forma, na própria Angst freudiana, a possibilidade de se traduzir em medo.
            E depois vem a repetição solitária do toque. O que se chama de masturbação, visto do lugar do menino, é uma forma de reviver na solidão do quarto esse momento de encontro com a mãe através da sua própria mão. É um gesto narcísico, mas nesse gozo narcísico/auto-erótico  já existe a possibilidade do outro, a representação desse outro, dessa mãe que vai e vem no movimento desta mão.
            Recorro agora a um texto de Serge Leclaire a respeito da letra, tal como Lacan aponta, mas concebendo-a como uma marca feita pelos dedos da mãe no corpo do infante. Várias letras, esparsamente inscritas, que só depois se juntariam numa possibilidade de sentido. Alguma coisa, então, é inscrita no corpo da criança por essa mão. Um manuscrito. Um manuscrito perdido, indecifrável, todo ele enigma, onde se inscreve o desejo.



* A partir de uma intervenção no Seminário do Instituto de Formação da Sociedade Psicanalítica da Paraíba.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

A EXIGÊNCIA DA POESIA*



                                                               
                                                                      

            O discurso emitido na cura tem como suporte uma “exigência pulsional” (Triebanspruch) que o contamina com uma significação inconsciente. Um poema, por sua vez,  tem como suporte uma exigência poética que seria uma refração, no plano da obra, de um movimento criativo inconsciente que o leitor é convidado a identificar e acompanhar em todas as suas conseqüências. 

            A presença desta exigência pode ser melhor compreendida a partir de um exemplo de Jean Laplanche quando descreve o momento de gênese de um dos seus textos: “jogamos palavras sobre o papel, como por acaso, levados pela assonância, seduzidos pelo efeito produzido ou a produzir (...).  Aí estão inscritas, de agora em diante, não completamente sem história, nem sem intenção deliberada, mas num certo lugar intermediário, de onde exigem fazer sentido.  Mas, desde então, não se tem mais sossego. Já estão investidos, pela exigência do tema, pontos de estimulação de onde irradiam a inquietude, senão a angústia: verdadeiro demoniozinho cuja energia é preciso ligar antes de toda esperança de fazê-la fluir e disso obter um certo prazer.  Eis aí, mais que uma imagem, mais que um modelo: um desses microtraumatismos renovados que pontuam, que relançam nossa atividade criativa” .[1]

            A exigência poética, portanto, reflete a exigência pulsional de quem escreve.  Antes de se deslocarem para o texto, esses microtraumatismos, de que fala Laplanche, exigem uma busca de sentido a partir do inconsciente do autor.  Antes de uma exigência textual, existe uma exigência pulsional a investir certos pontos de estimulação situados num espaço de transição, significantes já, mais ainda enigmáticos, a irradiar inquietação, angústia.  E a exigir tradução. 

            Tradução se torna aqui o nosso conceito central, se tomarmos como referência o aparelho psíquico visto como um sistema de estruturas sucessivas no tempo, cada uma delas formada para traduzir, fornecer significação, a um excedente energético pulsional, tal como concebido por Freud na Carta 52/112 de sua correspondência a Fliess.

            Antes que este texto se torne enfadonho, convido para escrevê-lo comigo uma menina que começou a fazer poemas aos três anos de idade, ditando-os para sua mãe. São de Mykaela Mota Plotkin os poemas que trago para fruir com vocês.[2]


            Mykaela tem a palavra:

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Impressões, traduções: o pathos em Marcel Proust

    Ronaldo Monte

“O escritor não precisa inventar, mas traduzir, porque o único livro verdadeiro é aquele que existe em cada um de nós. O dever e a tarefa de um escritor são os de um tradutor.” M. Proust.


         Na metade final de O tempo redescoberto, sétima parte do romance Em busca do tempo perdido, Proust reflete sobre a essência da obra de arte, particularmente sobre sua própria obra. É um momento em que o autor revela todo o seu gênio literário, pois, subvertendo a linearidade do tempo, nos mostra como deveria ser escrita a obra que estava acabando de escrever.
Quem possui alguma familiaridade com o Projeto para uma psicologia científica, esboçado por Freud em 1895, sabe que este movimento retroativo é característico da constituição do traumatismo psíquico, em que são necessárias duas cenas separadas no tempo. Uma primeira cena, em que acontece um atentado sexual, se daria num período em que ainda não existia uma sexualidade na criança (período que Freud nomeia, curiosamente, de sexual-pré-sexual). Só depois, com a ocorrência de uma segunda cena, aparentemente anódina, mas com relações simbólicas com a primeira, o trauma se instalaria efetivamente.
Este movimento a posteriori pode ser considerado a chave para a compreensão de todo o romance proustiano, como muito bem o ilustra as quatro experiências tomadas pelo autor para demonstrar o seu processo de criação: a famosa experiência com a madeleine, as pedras irregulares do calçamento na entrada da casa dos Guermantes, as lembranças de um martelo batendo numa roda de trem causadas pelo barulho de uma colher batendo num prato e o delírio imediato causado pelo contato de um guardanapo em sua boca.

domingo, 21 de dezembro de 2014

"A paixão insone" na Coleção Latitudes


Coleção Latitudes: Literatura em horizonte expandido

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Organizada pela escritora Maria Valéria Rezende, a série literária digital tem o objetivo de dar visibilidade a escritores com talento reconhecido em apenas alguns nichos regionais.

mosaico coleção latitudes
Mostra a História que grandes ideias e parcerias nasceram de conversas informais ao redor de uma mesa. Os compositores Tom Jobim e Vinícius de Moraes, por exemplo, conheceram-se numa mesa do bar Villarino, no Centro do Rio. Foi também numa mesa de restaurante que o arquiteto Oscar Niemeyer fez, nas costas frágeis de um guardanapo, o esboço do Museu de Arte Contemporânea de Niterói, uma das mais celebradas obras de sua carreira. No começo do ano, estavam sentadas à mesa de um café, em São Paulo, a escritora Maria Valéria Rezende e a diretora executiva da Revista Pessoa, Mirna Queiroz, quando veio à baila o problema da difusão da nova literatura no Brasil; a dificuldade para se distribuir e divulgar, com lealdade e alcance devido, a rica produção literária escrita e publicada em todas as regiões do país.
Maria Valeria por Daniel Mordzinski
A organizadora da coleção Latitudes, Maria Valéria Rezende. Crédito: Daniel Mordzinski
“A distribuição de livros físicos tem sido uma via de mão única e monopolizada por empresas sediadas no centro-sul. Há anos que eu, paulista aparaibanada, levanto sempre essa questão, não porque tenha pena dos autores, mas porque me parece que é a comunidade leitora do país que perde a oportunidade de enriquecer-se com diferentes pontos de vista, estilos, linguagens”, observa Maria Valéria Rezende.
Dessa incômoda constatação, ficou a proposta de se criar uma maneira de dar mais visibilidade a escritores com talento reconhecido em apenas alguns nichos. Porém, como superar a barreira geográfica? A resposta acaba de ser dada com a coleção Latitudes, inteiramente lançada no formato digital pelo selo Mombak, em parceria com a e-galáxia. A primeira leva conta com cinco títulos, já disponíveis para compra nas principais lojas virtuais do ramo.
“Um dos grandes motivos por trás da pouca divulgação desses escritores é a dificuldade de distribuição num país de dimensão continental como o nosso. O digital elimina essa barreira. Eu vejo essa plataforma com muito otimismo. Facilita o acesso à produção, realmente é mais barato, e encurta o caminho até o leitor. Mesmo quem não tem e-reader pode baixar um aplicativo no computador e ler os e-books. E isso é o que realmente importa: oferecer boa literatura ao alcance do leitor, onde quer que ele esteja”, aponta Mirna Queiroz, que faz o papel de editora.
A organização coube a Maria Valéria Rezende, cuja garimpagem inicial partiu de sua própria biblioteca, dos livros de pequenas editoras regionais que vai coletando no curso de suas viagens. Nessa seleção, figuram os títulos A paixão insone, de Ronaldo Monte; Aqui as noites são mais longas, de Geraldo Maciel; O beijo de Deus, de Dôra Limeira; Palavras que devoram lágrimas, de Roberto Menezes; e Já não há golfinho no Tejo, de Joana Belarmino. De acordo com a organizadora, a escolha final resultou da vontade de apresentar, de cara, uma variedade que incluísse romances, contos e minicontos, de mulheres e de homens de faixas etárias distintas, sendo três obras inteiramente inéditas e duas que haviam tido apenas edições locais já esgotadas.
“Há excelente literatura que só é bem conhecida na região em que o escritor vive e publica, de modo que o que se considera, divulga e analisa como sendo a literatura brasileira não é mais do que uma pequena parte dela, favorecida, com notáveis exceções, pela localização geográfica dos autores”, salienta.
O escritor Ronaldo Monte, autor de A paixão insone. Crédito: Mano de Carvalho
O escritor alagoano Ronaldo Monte, cujo livro explora a solidão e a busca pela ternura na conturbada relação com a violência urbana, atesta a necessidade de se desmistificar a noção de grandes centros literários. Segundo ele, o que existe, de fato, são complexos mercadológicos focados na publicação e na divulgação de alguns grupos de autores ligados a determinadas editoras sediadas, estas sim, em grandes centros comerciais.
Um centro literário, a meu ver, é um lugar que concentra uma produção literária significativa. E neste sentido, a noção de centro está sendo substituída por uma nova tópica em rede com seus pontos distribuídos por todo um campo territorial, virtualmente ligados entre si”, considera o autor.
Natural da Paraíba, o professor Roberto Menezes, que traz, emPalavras que devoram lágrimas, vencedor do Prêmio José Lins do Rego, o fluxo de consciência de uma mulher embalado por camadas de lembranças e desgostos acumulados durante sete anos de um casamento acabado, defende o estado como um centro literário, por concentrar, no cenário atual, excelentes autores que vivem um grande momento na prosa e na poesia.
A definição de grande centro literário é um pouco distorcida, muitos confundem com regiões onde se situam grandes editoras e distribuidores. O formato digital serve para esses autores quebrarem as fronteiras e levar sua literatura a lugares aos quais, muitas vezes, só editoras e distribuidoras dos maiores centros econômicos podem levar o livro físico”, atenta Menezes.
Com entusiasmo, a escritora Joana Belarmino, cujos contos da antologia Já não há golfinho no Tejo primam por um verniz poético, percebe os livros digitais como uma das invenções mais democráticas do nosso tempo.
A escritora Joana Belarmino assina a antologiaJá não há golfinho no Tejo
“Pensava no que seria do meu livro, encapsulado embits e bits, trafegando pela cibervia. Não sei se fui a primeira a comprar. Fui lá e fiz clique, e zaz! Feito pequenas libélulas, transportei para o smartphone os livros de toda a coleção. Abri meu e era como se os contos tivessem ganhado um sabor novo”, conta.
Para 2015, a intenção é lançar mais cinco títulos. Porém, de acordo com Mirna Queiroz, um trabalho sem pressa e cuidadoso, tratando o selo como uma butique literária, que aposta na qualidade e na bibliodiversidade.
Se a coleção responder aos nossos sonhos, daremos várias voltas pelo país. Já temos muitas obras de outras regiões engatilhadas, e passaremos outra vez, mais adiante, pela Paraíba”, complementa Maria Valéria Rezende.
Serviço

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Meu mestre cearense














Não sei o que fiz pra merecer tanta consideração da parte de Nilto Maciel. Nós nunca nos vimos, nunca trocamos uma palavra que não fosse por e-mail, não tenho deztões da competência que ele tem pra escrever um conto, muito menos um romance louco como Carnavalha. Mesmo assim, o Nilto vive me cobrindo de gentileza. No ano passado, me mandou os dois volumes dos seus Contos Reunidos. Mês passado, sempre pelas mãos do seu cupincha Pedro Salgueiro, me mandou o tal romance desvairado e o seu último livro de contos, Luz vermelha que se azula. Os contos, devorei em uma tarde. O livro demorou mais um pouco: dois dias.
A gentileza dada não se olha os dedos, diz a sabedoria eqüina. Mas mesmo assim procuro um motivo para os desvelos do Nilto Maciel. E encontro um, mesmo que saiba que não é esta sua intenção. Nilto me ensina a escrever. Cada palavra sua, cada frase, é uma lição de competência e propriedade. Seus personagens são de carne, de ossos e de sonhos. Suas paisagens passam a viver em nós, como lugares em que devíamos ter vivido. Com Nilto Maciel, parte-se do plausível para o delírio como quem pisca.
Que Nilto Maciel aceite que o adote como um irmão mais velho e mais sábio. Um irmão que nunca vi, mas que aprendi a amar com o amor que se transfere para quem escreve as palavras que amamos.
Tive muitos professores que me transmitiram o pouco que sei e aos quais sou devidamente grato. Mas tive poucos mestres. Uns três, talvez. Estes me ensinaram a pensar, a sentir, a viver e a deixar as marcas da minha passagem pelo mundo. A estes mestres queridos, vem agora se juntar Nilto Maciel, que me ensina a refinar o trato com as palavras. Que me mostra como se urdem os barbantes da realidade com os fios de seda dos delírios para tecer um texto que comprometa e fascine quem o lê.
Se de agora em diante eu passar a escrever melhor, podem ficar certos de que o mérito é deste meu mestre do Ceará.

domingo, 6 de março de 2011

A tecelagem noturna

Novas considerações sobre o poeta dormindo
(Versão abreviada)

Ronaldo Monte*

O poeta João Cabral de Melo Neto tinha 21 anos quando apresentou ao Congresso de Poesia do Recife, em 1941, as suas Considerações sobre o poeta dormindo . Ali, tentava falar das relações secretas, suspeitas, entre o sono e a poesia. O sono como fonte do poema. O poeta estava impressionado pela freqüência com que os críticos e poetas da época falavam e se preocupavam com o sonho. Dos estudos contemporâneos de psicologia às seções de jornais e revistas dedicados à “interpretação dos sonhos” as aplicações práticas que se faziam da produção onírica, sem nenhuma humildade, deixavam no completo esquecimento o mistério do sonho, a sua sombra.
O poeta não concordava com a dupla atitude comum aos homens do seu tempo, atitude “de quem come o sonho e de quem é comido pelo sonho”. João Cabral se refere ao sonho como uma obra de arte. Uma coisa sobre a qual se pode exercer uma crítica. O sonho é uma obra nascida do sono, feita para nosso uso. Uma coisa que pode ser evocada, que pode ser explorada através da memória. “Um poema que nos comoverá todas as vezes que sobre nós mesmos exercermos um esforço de reconstituição”. O sonho é uma obra em si, totalmente cumprida. Entretanto, por mais que esta experiência fabulosa que se assiste possa ser evocada, narrada, dificilmente pode ser transmitida. Isto por conta de seu parentesco com a poesia. Mais ainda, em virtude da própria poesia que o sonho traz consigo.
Interessa agora ao poeta isolar o estado de sono do fenômeno do sonho para depois verificar o que o sono tem a ver com o poeta e a poesia. Pois, ao contrário do sonho, o sono é uma aventura que não se conta, que não pode ser documentada. Uma aventura da qual se volta de mãos vazias. O sono é como um poço em que estamos ao mesmo tempo mergulhados e ausentes. E esta ausência nos emudece. Numa espécie de relação de causa e efeito, o sono não só provocaria o sonho, tendo-o como sua linguagem natural: o sono condiciona o sonho emprestando as dimensões e os ritmos de escafandristas às coisas que no sonho se desenrolam diante de nós. É o sono ainda que molda aquelas distâncias, que nos faz assistir certos acontecimentos contra os quais não podemos agir de nenhum modo, em que somos invariavelmente o preso, o condenado, o perseguido.
João Cabral agora se atreve a uma sutil fenomenologia, procurando estabelecer uma semelhança entre os elementos que compõem o clima do sonho, - um clima de tempestade, como o da poesia -, e a imagem da aparência do homem adormecido. Tanto os acontecimentos do sonho como o homem que dorme estariam profundamente marcados pela presença mesma do sono. Uma presença que não seria apenas a negatividade da vigília, mas marcada pela visão de um território desconhecido, um lugar onde somos estrangeiros e de onde “voltamos pesados, marcados por essa nostalgia de mar alto, de ‘águas profundas’...”
Território estranho, este, o do sono; mais estranho ainda por se localizar dentro de quem dorme. A atitude do corpo de quem dorme, “nessas poses não raro trágicas (irônicas), nas palavras que se quer balbuciar”, na fisionomia mesma de quem dorme podemos adivinhar “os sinais de uma contemplação, e que é, sob outro aspecto, um sinal de vida”. Quem dorme, digo eu, contempla o chão do sono. Arrisco-me a dizer que este chão é a verdadeira pátria do estrangeiro, desse outro estranho a quem assistimos desde o nosso posto de contemplação. Daí a nostalgia do mar alto, das águas profundas que trazemos de volta ao acordar. Que estranho este que dorme em nós.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Escrever é me destilar

Entevista concedida ao jornalista Carlos Herculano Lopes, do jornal "Estado de Minas"


1) Por que só estrear no romance agora, com quase 60 anos?. Foi proposital, ou foi deixando as coisas irem acontecendo?

Não sou eu que estou estreando no romance quase aos sessenta. O romance é que só está sendo publicado agora. Entre 1990 e 91, eu estava em Campinas fazendo um doutorado quando comecei a ser atormentado pela idéia central do texto. Comprei um caderno e comecei a fazer anotações, construir um roteiro, moldar os personagens. Imagine você ter que estudar psicanálise, filosofia, alemão, com um bando de cachaceiros se mexendo na sua cabeça. A história não deu trégua e foi se fazendo. Estava pronta há uns cinco anos. Mas como eu não queria mais uma “edição do autor” e não aparecia oportunidade de furar o mercado nacional, o texto foi sendo revisado, comentado por gente de confiança. Acho que esse tempo de espera fez bem ao livro.

2)Qual é a história que você conta em Memória do fogo? Como foram construídos seus personagens?

O argumento central é simples: um grupo de cachaceiros, totalmente vividos pela embriaguez, se juntam num determinado lugar para entrar em combustão espontânea. O que eu fiz foi acompanhar a trajetória de cada um desses homens desde a meninice até o momento do encontro. Estabeleci que cada um deles teria uma profissão ou uma experiência marcante ligada ao fogo. Mas logo no primeiro capítulo apareceu uma mulher com uma filha no colo. O nome da menina é Darque, Joana Darque, e vai cruzar com cada um destes homens ao longo da narrativa. No final das contas, a história que eu conto é a das pessoas que são lançadas no mundo em completo desamparo e não conseguem construir suas vidas. São devorados pelo fogo do álcool que toma conta de suas memórias. Antes, lhes empresta uma memória construída em torno de quase cinzas. No final, o fogo é como um deus benevolente que consome seus filhos a partir do dentro de seus corpos. Como uma graça por haverem se embebido da água ardente. Podem pensar que fui cruel com meus personagens. Mas eu fui misericordioso.

3)Com este livro você passa a integrar a coleção Fora do Eixo, da editora Objetiva. Como é fazer literatura em Alagoas? Até que ponto viver fora do "eixo" pode influenciar na vida de um escritor?

Primeiro, uma correção. Nasci em Maceió, mas fui com onze anos para o Recife e vim para a Paraíba aos trinta anos, ensinar na UFPB. Eu faço literatura na Paraíba. Não vejo muita diferença em fazer literatura aqui ou em qualquer lugar do País. A diferença está na oportunidade de publicação. Mesmo assim, sei que nem todo escritor do “eixo” está dentro do “eixo”. O “eixo” é o mercado. Já apareceram algumas vozes classificando o meu texto como regionalista. Acho que esta questão está superada. De uma forma ou de outra, todos somos regionalistas. O escritor que conta as tramas de um quarteirão da avenida Paulista ou de uma favela do complexo do Alemão está, a seu modo, sendo regionalista. No final das contas, falamos todos de uma região virtual que nos habita e nos constrói. Ela é composta dos lugares em que vivemos, das pessoas que roçamos, dos livros que lemos, dos quadros que vimos, dos filmes ou novelas que vemos. Esta região nos acompanha e exige que falemos dela.

4) Literatura e psicanálise caminham juntas? Até onde você deixa o psicanalista interferir nos seus textos literários?

Comecei a escrever antes de me tornar psicanalista. Cometi poemas ainda menino. Mais tarde fui redator de propaganda, no Recife. Afiei meu texto a soldo. Aos poucos fui tentando o texto curto, uma crônica aqui, um conto ali, alguns texto inclassificáveis que teimavam em continuar poemas. Foi a psicanálise que cafetinou minha escritura. Meus textos acadêmicos são palatáveis, o que não quer dizer que sejam de fácil digestão. É natural que, ao saber que sou psicanalista, as pessoas procurem e achem no meu texto referências ao Édipo, à castração, etc. Mas até onde eu saiba, não procuro deliberadamente tratar de temas psicanalíticos. Mas como nada do que é humano é estranho à psicanálise, é natural que os personagens vivam certos temas visados pelo saber psicanalítico. Só não posso negar que minha forma específica de escuta, marcada por uma neutralidade benevolente, influencia o modo como permito que os personagens se expressem, como consigo sintonizar com seus sentimentos, numa espécie de identificação que aprendi a usar no consultório.

5)Quais são os escritores que você tem como referência? Se sente diretamente influenciado
por algum deles?

Tenho lacunas enormes na minha formação literária. Minha família não tinha tradição de leitura e tive que me virar sozinho. Mas lá em casa tinha uma coleção do Tesouro da Juventude que foi a minha salvação. Comecei com José Lins do Rego de quem tomei emprestado o imaginário rural. Pois sou um nordestino urbano do litoral, um caranguejo, como disse Gilberto Freire. Depois vieram Machado de Assis, Graciliano, Guimarães Rosa. Mário de Andrade quase todo e um pouco do Oswald. Tem os poetas, também os básicos. Bandeira, Vinicius, Drumond, Murilo Mendes. Enfim, o serviço militar obrigatório, e a passagem também obrigatória por Fernando Pessoa. Tem as mulheres também. Clarisse e Adélia. Li e leio o que me cai nas mãos. Thomas Mann, Günter Grass, Antonio Callado. Dos pernambucanos, além do texto de Gilberto Freire, tive muita influência de Hermilo Borba Filho. Passei um tempo querendo ser o João Ubaldo. Agora, o texto que mais me espantou foi o de Saramago. Li o “Memorial do convento” numa edição da Difel, muito antes dele se tornar famoso por aqui. Mais recentemente, ando encantado pela narrativa de Ítalo Calvino. Gostaria de ter a delicadeza dele. Mas não gostaria de ser tomado como epígono de ninguém.


6)Para o que você acha que serve a literatura? O que o ato de escrever significa para você?

Mesmo correndo o risco do lugar comum, acho que a literatura serve para nos tornar mais humanos. Lendo ou escrevendo, estamos exercitando certas possibilidades de ser que muitas vezes nos são inacessíveis no cotidiano. Sempre digo que sou bem melhor por escrito. Somos todos muito destabanados no calor da refrega. Escrevendo, somos mais cuidadosos com as palavras, temos tempo para medir sua densidade. Escrever, para mim, é me destilar.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Fora dos eixos



Ronaldo Monte, autor do romance "Memória do fogo", é psicanalista. Daí o dom, louco, de um de seus personagens, de ver as pessoas "por dentro". Daí o trabalho seguro, do romancista, com os complexos de Édipo e Eletra, que vemos em belos personagens como Massapê e Joana Darque. Daí, talvez, o prazer que nos proporciona sua escrita, no que nos passa sua visão sombria de um mundo "out of joint", como diz Hamlet, num texto luminoso. Freud era um grande escritor. Alguns livros dele, como "Psicopatologia da vida cotidiana", são excelentes realizações literárias. Ronaldo Monte, romancista, também herda do Dr. Ronaldo Monte o conhecimento da alma humana e a precisão no uso das palavras. "Pois este corpo de menina parece que não está dando mais em mim", diz - fascinantemente - uma de suas criaturas. "Se soubesse a palavra eriçado, estaria eriçado", o ficcionista diz, soberbamente, de outro vivente seu.

Somente alguém que convive com a Sombra de cada um de nós poderia dizer, com pleno conhecimento de causa, que "é cada vez mais feio o que vejo dentro das pessoas". Mas Ronaldo Monte faz, do relato do que vê, sua obra de arte, buscando, talvez, a sublimação do que vive em seu dia a dia, antes mesmo da aristotélica catarse de seus leitores. E o elemento essencial do instrumento que escolheu para isso, a palavra, ele a usa com brilho, criando um ambiente primitivo e místico, exacerbado pelo uso estratégico de orações do livro de São Cipriano, o que termina por dar ao seu trabalho um tom, frequentemente, de realismo mágico. "Tua mãe morreu de novo, menino. Vai chamar teu pai."

"Memória do fogo", apesar de suas poucas cento e vinte e três páginas, não tem pressa alguma de nos levar ao seu final. Avança lento, com estórias soltas que, aos poucos, vão se entrelaçando, até que tenhamos as sagas de seis homens e de uma mulher que se reúnem misteriosamente ao redor das chamas, cada um reconhecendo no outros os pares de seu sofrimento. O fogo, evidentemente, é o elemento que funde essas narrativas, como quando a donzela pobre - Joana Darque (nome da santa que morre na fogueira)- sonha com um homem que lhe dê um fogão a gás, ou quando entramos - no capítulo "Massapê" - na oficina do oleiro, onde uma leva de cerâmicas é trabalhada no forno.

Um livro estranho. Com material de primeira para discípulos e dissidentesde Freud. A Objetiva marcou um tento com sua série "Fora dos eixos". Marcou outro ao levar ao país mais esse rebento da nova literatura nordestina e, mais precisamente, paraibana.